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um blog de desabafos, alegrias e tristezas, revoltas e euforias, o meu espelho, com uma (agora) pitada de diletantismo.

sexta-feira, janeiro 07, 2005

Como será?... 

Já passou algum tempo, o suficiente para os nossos guias media nos fazerem esquecer o acontecimento aos poucos. Tal como o assalto à escola na Rússia, tão subestimado depois do "final feliz" que já nem me lembro do nome da localidade, também tendem a fazer esquecer A TRAGÉDIA NA ÁSIA, porque enfim, aos poucos tudo se endireita, pensam eles...

E esquecem-se. Insistem com os relatos dos sobreviventes, com o "testemunho de quem viveu a catástrofe", com a imagem daqueles que certamente não sabem porque descrevem a sua experiência. Talvez porque ela nunca sairá das suas memórias e alivia soltar um pouco cá para fora aquilo que conseguem colocar em palavras, trémulas, na esperança de que um dia essa lembrança desfaleça... Mas esquecem-se daquele aperto no peito, que verdadeiramente importa e que nunca conseguirão transportar para o pequeno ecrã.

Não que queira sentir esse aperto, porque me aflige; se me aperceber da sua monstruosidade, porém, poderei ser uma espectadora digna, e não alguém de mera piedade para com aqueles que sofrem - e sofrerão - a milhas e milhas de distância. Mas custa, como custa imaginar!...

Sempre tive medo do mar, dos remoinhos, de me sentir a rebolar por entre as ondas que julgava gigantes. Sempre sofri quando ficava muito tempo debaixo de água, desesperando por oxigénio. Sempre tive, certamente como todas as pessoas, o instinto de fugir dos choques físicos, de escapar à dor, à masela mais suave, ao encontrão contra algum objecto. Também sempre falei em termos como "quando tiver filhos", "quando for casada", "quando for velha", porque gosto de acreditar que viverei até lá, porque gosto de viver. E sobretudo sempre tive amor aos meus, qual proximidade que tantos tanto estimamos e sofremos por ver longe, seja em que sentido for.
Sempre acordei aliviada, apesar de ofegante, depois de pesadelos que contrariarem este cenário. E no entanto sei, porque me obrigaram a saber, que milhares de pessoas viveram este pesadelo, completíssimo, sem terem hipótese de escolha, sem poderem acordar. Milhares de pessoas sofreram o choque da visão sobre ondas imperiosas que se aproximaram delas sem piedade, alimentando a fúria silenciosa da Natureza, que surge sem aviso prévio, que corre tudo lembrando aos humanos que tem mais poder do que eles. Esses milhares foram engolidos instantaneamente, talvez os mais afortunados pela morte rápida, não vivendo o que outros viveram. Esses outros seguiram o seu instinto de sobrevivência, e mesmo assim não conseguiram. Procuraram sim, desesperadamente, o oxigénio por entre a espuma que os dominava. Não respiraram senão água, que entrou brutalmente pelo seu corpo dentro, multiplicando a mínima aflição que sentimos quando "nos engasgamos"! (O que é isso?!) Perderam o poder de correr, o seu esforço revelou-se inútil perante a força magnificiente da água, que poucos instantes antes era o deleite do seu olhar, o suspiro do descanso, a crença na existência de paraísos. Deixaram de sentir as pernas, os braços, os pulmões, outros, talvez os consideremos com mais sorte, perderam os sentidos e não "precisaram" de ficar aterrorizados com a sua própria impotência. Chocaram contra tudo o que não sabiam o que era, que não viam, que não queriam ver. Agarraram-se a árvores nas quais outrora não repararam. Outrora, sim, porque os instantes precedentes faziam agora parte de outra vida.

Mas principalmente, e sobre toda esta dor física que foi possível sentir, desmoronaram-se perante o olhar inalcançável sobre os seus parentes e amigos. "Parentes", "amigos", palavras simples estas, não? É fácil pronunciá-las, quando não nos lembramos que vivemos toda a vida com os nossos Pais, os nossos Irmãos, os nossos Filhos, e todos aqueles que nos acompanharam e ajudaram toda a vida. Ali, naquele cenário de destruição, de Fim, a aflição de ver todos esses parentes e amigos a escaparem conseguiu ser, certamente, mais impetuosa que todas as ondas ali derramadas. Enquanto lutaram pela sobrevivência, mais ou menos conscientes do seu estado, do seu destino, procuraram fazer o feedback de todas as memórias das suas vidas, desejando poder pedir Perdão ou dizer Obrigado a alguém por algum motivo. E não puderam. Foram-se, morreram, a água calou-os.

Não adianta, contudo, gritar ao Mundo que não devemos adiar aquilo que desejamos dizer aos outros sem o conseguirmos, nem adianta lembrar que há dores suficientemente imensuráveis para nos fazer renunciar assim aos caprichos do dia-a-dia. É inútil, porque o ser humano é assim, confiante demais, talvez.

O que fazer afinal? Que atitude tomar perante esta vida mesquinha? Ou será que ela não é mesquinha? De que me serve falar sobre estes casos, se há tantos outros que se ignoram? E a dor interior, silenciada, calada, que a tantos corrói aos poucos? Será mais profunda, por nos lembrar que podemos solucioná-la sem no entanto o fazermos? Ou não há de todo dor maior do que a de se ser engolido pela Terra, pela Água, pela Natureza, como se alguns tivessem de pagar pelo que todos nós lhes fizemos de mal? Haverá forma pior de perder um filho, do que vê-lo escapar-nos das mãos quando lhe prometemos todas as noites que nunca deixaríamos que algo de mal lhe acontecesse?

Todos sofremos com as imagens, os relatos, a imaginação tão aquém do que realmente aconteceu naquele outro canto do planeta. Mas dentro de pouco tempo far-nos-ão esquecer tudo isto, como se só a miséria merecesse a nossa atenção, como se o nosso olhar misericoridoso fosse um auxílio a esta dor inicial, e logo depois já não tivesse utilidade.

Louvados sejam aqueles que largam tudo para dar apoio permanente àquela gente que TUDO perdeu, restando só a obrigação de ter coragem para seguir a vida, essa vida agora partida ao meio. Aqueles outros, como eu, que se limitam a observar, a descrever, a "acompanhar os acontecimentos" com pena sem nada fazerem de prático, nada fizeram senão sucumbir à hipocrisia e à cobardia.

Se olhar com desdém um mendigo na rua, como se houvesse uma fronteira entre nós e eles, é já um acto miseravelmente constante, o que será ver multiplicada essa miséria para uma dimensão que no fundo nem temos a capacidade de percepcionar?...

Resta-me dizer, face a tudo o que não entendo nesta vida, que por vezes imagino que fosse preferível sermos robots, sem sentimentos. Então não saberíamos qual a dor monstruosa de ver tudo a desmoronar-se... assim.


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