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um blog de desabafos, alegrias e tristezas, revoltas e euforias, o meu espelho, com uma (agora) pitada de diletantismo.

quarta-feira, junho 15, 2005

Por arrasto 

O escalão etário que abarca os 18-25 (sensivelmente) sabe ao que me refiro quando falo em meses como o de Janeiro e o de Junho. Junho, principalmente. Ou nos controlamos sobre os instintos de quem vive a poucos quilómetros de uma costa linda (embora banhada de comunistas), ou tornamos vão este tempo de trabalho.

Nasci e rapidamente me foi incutida esta evolução. Estudar, trabalhar, criar família. E assim fui levando a minha vida. Acho que nunca parei muitas vezes para me perguntar se deveria mesmo seguir este ritmo, e agora que penso nisso vejo que o problema reside exactamente aí: tudo é automático, agora.

Senão vejamos, mesmo em escala reduzida. Fecho-me em casa, porque o calendário que um edifício aqui perto estipulou diz-me que amanhã a dadas horas, que vejo num relógio que depende de pilhas, terei de escrever numa folha de avaliação. Para isso, então, leio livros, comprados com cartão de crédito, ou com notas, ou em fotocópias que uma máquina não sei por quem inventada permitiu produzir. Resumo o que consigo (e isso depende dos meus neurónios que, tanto quanto sei, ainda são orgânicos) e dactilografo nestas teclas onde curiosamente escrevo no presente momento. Um ecrã ligado à electricidade mostra-me o que escrevi, eu pinto setas e títulos e eu sublinho com um "clic" que até há uns anos só poderia fazer com o auxílio de uma caneta e de uma régua. Resumo terminado, faço "clic" novamente e o que escrevi sai impresso nas folhas que coloquei dentro de outra máquina.

Antes de reler os tais resumos, a fome aperta no meu estômago. Claro, estranho seria eu não mencionar a minha gula. A partir daí o automatismo revela-se novamente omnipresente. Eu ligo a ventoinha (sim, porque estamos em Junho... lembrei-me agora), eu abro o frigorífico, eu utilizo pacotes produzidos em fábricas, eu ligo a torradeira, eu abro a torneira enquanto sei que dela vai cair água, eu ligo a televisão para me desconcentrar, eu dou uso ao neologismo "zapping".

E, entretanto, vou estudando. Tanto quanto os meus poucos neurónios orgânicos ainda o permitem. Eu estudo aquilo que muitos indivíduos de sexualidade indefinida decidiram publicar em livros, os tais que são feitos nas fábricas e impressos graças à electricidade. Eu tento perceber o que eles querem dizer com "querela de método", com "ut pictura poiesis", com "estruturalismo", com "deícticos"... porque talvez um dia isso me sirva para impressionar aquele ou aquela, provavelmente também de sexualidade indefinida, que me fará entrevistas quando eu quiser candidatar-me a um emprego.

"Emprego", ora nem mais. Eu faço tudo isto para ser "empregada", que é como quem diz ser atirada para algum lado. Desconheço a etimologia do vocábulo, até porque a chamada ortografia automática desta ecrã que mencionei obriga-me ao sedentarismo, a evitar tudo aquilo por que os monges copistas de há uns vagos anos atrás interessar-se-iam. Talvez "emprego" tenha qualquer coisa a ver com o acto de pregar, que equivale a fixar, a prender, talvez até a colar o meu lábio de cima ao meu lábio de baixo para que eu não tenha voto na matéria. Sabem, é que nisto dos empregos há hierarquias, e por muito que eu estude vai ser difícil poder dizer "cale-se". Terei de começar a usar cremes anti-rugas para perceber que eventualmente estou a chegar à altura de poder mandar no que quer que seja.

Se não conseguir dizer "cale-se" no emprego, talvez possa pelo menos dizê-lo aos meus filhos. E por isso vou tratando disso já. É a parte de que falei sobre "criar uma família". Alimento esta etapa de vida que me impuseram quando me farto do ritmo de estudo e resolvo destrancar-me de casa. Então saio, sorrio um pouco feita parvinha com aquela pessoa a que alguém resolveu chamar "meu namorado", digo umas coisas como "gosto muito de ti" (sim, porque nas tais de hierarquias profissionais não se diz disto) e volto para o ritmo de estudo, até porque o relógio a pilhas diz-me que é tarde - e di-lo melhor do que a luz do dia que se faz sentir sobre mim. Nestas alturas desculpo-me, porque afinal é Junho, e com uma noite tão tardia nunca pensei que fosse tão tarde.

Suspiro. Que raio de vida vou levando. Bom, mas isto é o dito "imposto" - do verbo "impôr", e não dos "impostos" que a televisão ligada à electricidade me diz todos os dias que vão subir, sem que eu saiba exactamente o que é ainda porque não tenho emprego, sou uma criança. Estava eu a dizer que isto diz respeito ao que me impõem que eu faça. Posso sempre variar. Mas se variar, restam-me futuros menos brilhantes: posso ser marginal ou toxicodependente. Ou vender colares de missangas na rua.

Pensando bem até é uma boa hipótese. Não tenho de me chatear com as palavras que os paneleiros inventam, não tenho de fazer-me de inteligente para os meus patrões, não tenho de passar horas em frente a um ecrã que não fala - e que falha quando menos deve!!!!! - , não tenho de apanhar diarreias porque o frigorífico não cuidou bem da minha gula, nem tão pouco terei de ligar a ventoinha porque na praia onde eu vender missangas poderei refrescar-me no mar (que ainda é orgânico).

Vendo, no entanto, bem as coisas... se perdesse tudo isto também perderia a oportunidade de "criar família". E dizem que isso é bom. Portanto é melhor não decidir fazer nada de muito radical. Embora conheça quem faça e não se arrependa.

Não fosse eu uma diletante, talvez seja preferível deixar-me arrastar pelo caminho automático. E vamos ver onde vou dar. |

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