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um blog de desabafos, alegrias e tristezas, revoltas e euforias, o meu espelho, com uma (agora) pitada de diletantismo.

domingo, outubro 17, 2004

Fim-de-semana 

Apanho o comboio da ponte em direcção ao Fogueteiro. Vejo que a linha já está prolongada até Setúbal e que a afluência à estação é bem maior do que o costume para um sábado, mas para a televisão só se vai dizer que é caro e não se justifica. O certo é que ali estavam. Ao passar a Ponte 25 de Abril (que até hoje não entendo porque não se manteve como a Ponte Salazar, não querendo com isto fazer-me adepta do senhor) tive medo que ocorresse um acidente; imaginei-me a ter com a passageira que seguia à minha frente o último diálogo da minha vida, mas felizmente o Tejo deixou de se ver sob mim e senti-me em terra firme. Em Corroios, uma senhora negra com os seus três filhos, cujo pai não se avistava, gritava sem parar "PASSA N'ÁMORA? SINHÔR! PASSA N'ÁMORA?!". Quando finalmente resolveu dar ouvidos a todos os passageiros que lhe respondiam no lugar do "sinhor", entrou na carruagem e as três pestes impediram a minha até então agradável leitura do "Retrato a Sépia".

Já na estação do Fogueteiro, enquanto decidia para qual das saídas haveria de me dirigir, ouvi e tive de ignorar um mitra que me abordou com o típico "Oh, pssst". Arrepio-me toda, detesto mitras. Apavoram-me. E aquele era perfeitamente estereotipado: o fato de treino em tons azuis e brancos, os brincos dourados e o boné branco com a pala para cima para não estragar a poupa de gel.

Finalmente vejo o Passat 69-72-IN. Entro no carro e oiço o meu Pai dizer com um sorriso "tenho uma fila tão bonita" (é mesmo fila, não filha). Pai é isto: é quem diz que sou bonita mesmo quando estou com as calças, a camisola e os ténis mais velhos que tenho, um colete praticamente salva-vidas, a cara deslavada, o cabelo despenteado e uma mochila amarela com apetrechos folclóricos. Seguimos viagem, enquanto mordisco os tremoços e as azeitonas que o meu Pai se lembrou de me trazer. Adiantou-me que o almoço não seria nada de especial, um petisco de fanecas e carapaus, para que me deleitasse, como me deleitei, quando cheguei a casa e vi umas belas iscas de vaca a serem preparadas.

"Quando cheguei a casa". Sim, a casinha da Aroeira. Aquela que ninguém sabe, para além dos meus Pais e da minha irmã, o significado que tem realmente. Deixei a mochila amarela no meu quarto, juntamente com a Isabel Allende que vinha debaixo do meu braço e desci para saborear as deliciosas iscas. Ainda me lembro quando, no Externato, eu perguntava inconformada às Irmãs por que não faziam "fígado com puré". Depois do almoço, quando o Pai e a Mãe foram ao café, tratei de levantar a mesa, pôr a loiça na máquina e apetrechar a mesa com o meu material universitário.

Depois de estudar quatro horas seguidas rendi-me ao sofá com aquelas inúmeras almofadas, adormecendo ate à hora de jantar. Arroz de berbigão, desta vez. Novamente o café enquanto dou um jeito à cozinha e oiço Tom Jobim. Na volta entretemo-nos com o regresso do "1,2,3", leio mais um pouco e assim se faz o "serão na Aroeira". É sempre assim, e é assim que eu gosto. Lá fora vejo tudo escuro e arrepio-me como se sentisse o frio que ali faz. É cedo, mas decido subir e despeço-me dos meus Pais. Na cama devoro mais umas folhas do Retrato a Sépia e, antes que o meu Pai venha para me desligar a luz, olho para as paredes do meu quarto e imagino a cor, a posição e a densidade das prateleiras, da secretária, das portas do armário, do ambiente que há tanto sonho para ali. E adormeço.

***

Tive um pesadelo. Sonhei que estava com a minha Família e mais centenas de pessoas a atravessar a Ponte 25 de Abril, a pé, quando se sente um terramoto que eu não senti e a ponte se parte ao meio, começando por cair o centro progressivamente até aos cantos. Curiosamente, no centro, a salvo, José Castelo-Branco alerta histericamente para a ocorrência de um terramoto e para a iminente queda da ponte. Numa fuga emotiva dos meus Pais e irmã para dentro do carro-casa dos Bombeiros decorreu a maior parte do pesadelo até que graças a Deus acordei e lamentei a maldita hora em que no dia anterior atravessei sobre carris a pobre ponte. Esqueci rapidamente o sonho quando me apercebi que queria ter-me levantado cedo e já era meio-dia.

Entre o bom banho da minha casa-de-banho e a hora de almoço, desta vez um belo Cozido à Portuguesa, entretive-me a saber as notícias do dia e a ler a "ÚNICA" do Expresso, com destaque para um excerto do recente livro do Carlos Cruz e uma excelente crónica de ataque subtil à "indefinida espécie animal" de José Castelo-Branco.

Depois do almoço novamente o abraço às folhas e aos livros. Desta vez estreei os arranjos do quarto das visitas, que o IKEA permite que se façam de uma vez só, e deitei-me na cama, com uma camisola enorme e uma manta a aquecer-me os pés. Tentei pegar no monte de fotocópias em francês e estudá-las, mas a Isabel Allende não parou de me chamar. Peguei no livro e devorei quase cem páginas, parando de vez em quando para ler uma ou outra fotocópia, mas das que encontrei em português, para não baralhar o idioma das leituras...

O fim de tarde chegou depressa. Arrumei as coisas, deixei o meu quartinho como o encontrei (pouco poderia mudar, já que o conteúdo ainda é escasso), pusemos tudo no carro e seguimos para Lisboa. O som frenético que a rádio transmitia sobre o Clássico SLB x FCP quebrou um pouco o silêncio a que o frio, lá fora, apelava. Dei conta de uma placa junto da Mata na Fonte da Telha, que dizia "PERIGO DE INCÊNDIO - Não faça lume"... uma placa que me lembrou o que a televisão não tem lembrado.

Agora já é "Domingo à noite": o típico jantar suave e o desejo de um resultado favorável ao Porto que anime o meu Pai. Mesmo que não ganhe, não importa. Passámos o fim-de-semana "na Aroeira", tenho a certeza que isso o deixa muito mais feliz.
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